Em 2016, quase 9% da população global (um número equivalente a 488 milhões de pessoas) trabalhava cumprindo jornadas de 55 horas semanais ou mais, de acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Ou seja, se descansar ou “gastar tempo” fazendo algo que não geraria monetização ou produtividade já era algo distante há quase 10 anos, depois da popularização das inteligências artificiais a situação se agrava. Em um mundo tão focado em performance, fazer algo por pura paixão ou prazer é, por si, um ato revolucionário.
A chegada das IAs criou uma tensão dupla: ao mesmo tempo em que aumentam a expectativa de desempenho, de fazer mais e mais rápido, elas também alimentam nossa ilusão de que podemos usar nosso descanso para criar só mais um “textinho”, um “videozinho” ou “responder só mais um e-mailzinho” de forma rápida, convertendo pequenos momentos de descanso em mero luxo e/ou perda de (potenciais) oportunidades.
Nesse contexto de autoexploração (para usar a expressão cunhada por Byung-Chul Han em a “Sociedade do Cansaço”), adultos exaustos começaram a pintar mandalas e, a partir daí, a febre dos livrinhos de colorir nunca passou. 
Alguns anos depois, além da exaustão, diversos outros fatores levaram muita gente à compra de bebês reborn e, agora, os próprios adultos estão usando chupeta (de forma não irônica e fora do período carnavalesco). Vi comentários de pessoas reclamando da aterradora “adultização” de crianças (em alusão ao já famoso vídeo do Felca) concomitante à “infantilização” de adultos. 
A zona de conforto e o aconchego compreendidos como únicas fontes de descanso
A necessidade da sensação de conforto e aconchego tem levado pessoas mais velhas a prazeres antes restritos a quem tinha menos de 12 anos de idade, em vez de escolher, por exemplo, a companhia de um livro complexo ou exercitar um hobby considerado coisa de “adulto”. 
Dessa forma, ler um clássico ou assistir a um filme mais “maduro” são atividades entendidas como extensão do trabalho, um exercício que, além de excruciante, não gerará retorno “financeiro” ou se converterá em algo tangível. Essa predileção é sintoma de algo maior e mais urgente.
Não estou aqui condenando quem opta por qualquer uma dessas atividades. Se não está prejudicando ninguém, que mal tem? Além do mais, creio que práticas simples, como colorir ou cuidar de objetos que remetem ao aconchego infantil, funcionem como válvulas de escape e tentativa legítima de restauro emocional. 
Estudos mostram que colorir melhora a coordenação motora, reduz a ansiedade, acalma a mente e ativa foco semelhante à meditação. Já cuidar de um bebê que não existe acaba sendo, também, uma forma de autocuidado. Por mais estranho que pareça, depoimentos mostram que há um forte apego a esses objetos de afeto e que eles podem até ajudar a conter episódios de ansiedade.
Como alguém que desenha e pinta desde os seis meses de idade, acredito no poder de cura inerente a um hobby, seja ele qual for. 
Aqui, estou lamentando a inacessibilidade por parte de quem opta exclusivamente por atividades que desligam a mente e oferecem conforto imediato. Acho triste que adultos, especialmente os mais jovens, não vivam experiências mais ricas, que exigem esforço, curiosidade e que expandem a criatividade em seus períodos de relaxamento.
Meu ponto aqui não é hierarquizar hobbies, muito menos pregar a existência de “superioridade cultural”. A minha preocupação é falta de ampliação de repertório e a impossibilidade de pessoas experimentarem um descanso que possa ser, também, oportunidade de nutrição para a mente e para a alma. 
A importância do tédio e do desafio para desenvolvimento de senso crítico
Acredito que tanto o escapismo, a fuga, quanto o descanso como reconstrução possam coexistir. O problema, afinal, não é ter um bebê reborn ou colorir mandalas, mas, sim, deixar que esse tipo de atividade seja o único descanso em detrimento de experiências mais desafiadoras e construtivas. 
Existe um lado positivo em abraçar o tédio e o desconforto que tem sido negligenciado em nossos tempos de redes sociais e mensuração de performance a cada segundo do dia. 
Por trás dos lápis de cor ou de um objeto que “não faz sentido”, há um cérebro que precisa de cuidado, do tal do “dolce far niente”, de fazer algo pelo simples prazer de fazer. Porém, o ser humano foi criado para criar; o incômodo criativo (e tudo o que vem nesse processo) também é sinônimo de relaxamento e autocuidado. 
Descanso pode representar oportunidades de desafios intelectuais com direito a um desconforto que não deve ser confundido com o estresse da rotina profissional. 
Essas experiências não deveriam ser evitadas, mas somadas aos necessários momentos de total indulgência, sejam eles usar chupeta ou assistir àquela série que você não conta para ninguém que assiste. Os desafios intelectuais também precisam integram momentos importantes da vida adulta e completar o quebra-cabeça complexo de bem-estar físico e desenvolvimento mental de um indivíduo saudável. 
O problema está em renegar o desconforto de um hobby ou daquela criação que não gera retorno financeiro e, por isso, ter uma vida composta exclusivamente de estresse por 10 horas diárias e de prazeres culpados para tentar curar uma ferida que nunca vai fechar. 
Back to Top