Em 2016, quase 9% da população global (um número equivalente a 488 milhões de pessoas) trabalhava cumprindo jornadas de 55 horas semanais ou mais, de acordo com um estudo da Organização Mundial da Saúde (OMS) em parceria com a Organização Internacional do Trabalho (OIT).
Ou seja, se descansar ou “gastar tempo” fazendo algo que não geraria monetização ou produtividade já era algo distante há quase 10 anos, depois da popularização das inteligências artificiais a situação se agrava. Em um mundo tão focado em performance, fazer algo por pura paixão ou prazer é, por si, um ato revolucionário.
A chegada das IAs criou uma tensão dupla: ao mesmo tempo em que aumentam a expectativa de desempenho, de fazer mais e mais rápido, elas também alimentam nossa ilusão de que podemos usar nosso descanso para criar só mais um “textinho”, um “videozinho” ou “responder só mais um e-mailzinho” de forma rápida, convertendo pequenos momentos de descanso em mero luxo e/ou perda de (potenciais) oportunidades.
Nesse contexto de autoexploração (para usar a expressão cunhada por Byung-Chul Han em a “Sociedade do Cansaço”), com a finalidade de encontrar pausas e aliviar o estresse, adultos exaustos se renderam aos famosos livrinhos de colorir. A partir daí, essas opções se tornaram um verdadeiro fenômeno editorial, alcançando expressivos 11% do total de exemplares vendidos no Brasil.
Alguns anos depois, além da exaustão profissional, a pandemia e seus efeitos, os embates políticos, a recessão econômica e tudo o que decorre desse contexto levaram muita gente a buscar conforto da forma que podia. Entre as opções, duas questões curiosas suscitaram debates acalorados: a compra de bebês reborn e, mais recentemente, adultos usando chupeta (de forma não irônica e fora do período carnavalesco). Vi comentários de pessoas equiparando a aterradora “adultização” de crianças (em alusão ao já famoso vídeo do Felca) à “infantilização” de adultos. 
A zona de conforto e o aconchego como únicas fontes de descanso
Essa busca desenfreada pela sensação de conforto e aconchego tem levado pessoas mais velhas a prazeres antes restritos a quem tinha menos de 10 anos de idade, em vez de escolher, por exemplo, a companhia de um livro complexo ou exercitar um hobby considerado coisa de “adulto”. 
Com isso, opções como a leitura de um clássico ou uma sessão pipoca envolvendo um filme mais “maduro” acabam por ser compreendidas como atividades tão exaustivas quanto o próprio trabalho, um exercício que, além de excruciante, não gerará retorno “financeiro” ou se converterá em algo tangível. A predileção por atividades menos desafiadoras intelectualmente como sinônimo de conforto pode ser sintoma de algo maior e mais urgente.
Antes de continuar, vale um aviso: não estou aqui, de forma alguma, fazendo juízo de valor ou condenando quem opta por qualquer uma dessas atividades. Até concordo que práticas simples, como colorir ou cuidar de objetos que remetem ao aconchego infantil, podem, sim, funcionar como válvulas de escape e tentativas legítimas de restauro emocional. 
Estudos mostram que colorir melhora a coordenação motora, reduz a ansiedade, acalma a mente e ativa foco semelhante à meditação. Já cuidar de um bebê que não existe acaba sendo, também, uma forma de autocuidado. Por mais estranho que pareça, depoimentos demonstram que há um forte apego a esses objetos de afeto e que eles podem até mesmo ajudar a conter episódios de ansiedade. Como alguém que desenha e pinta desde os seis meses de idade, conheço muito bem o poder de cura inerente a um hobby, seja ele qual for. 
Estou lamentando a inacessibilidade de atividades mais ricas por parte de quem opta exclusivamente por soluções que desligam a mente e oferecem conforto imediato. É triste que adultos, especialmente os mais jovens, se privem de experiências mais ricas, que exigem esforço, curiosidade e que expandem a criatividade em seus períodos de relaxamento.
Meu ponto aqui não é hierarquizar hobbies, muito menos pregar a existência de “superioridade cultural”. A minha preocupação é falta de ampliação de repertório e a impossibilidade de pessoas experimentarem, em seus períodos de descanso, opções que representam mais do que relaxamento: são uma oportunidade de nutrição para a mente e para a alma. 
A importância do tédio e do desafio para desenvolvimento de senso crítico
Com certeza, tanto o escapismo, a fuga, quanto o descanso como reconstrução podem coexistir. O problema, afinal, não é ter um bebê reborn ou colorir mandalas, mas, sim, deixar que esse tipo de atividade seja o único descanso em detrimento de experiências mais desafiadoras e construtivas. 
Existe um lado positivo em abraçar o tédio e o desconforto que tem sido negligenciado em nossos tempos de redes sociais e mensuração de performance a cada segundo do dia. 
Por trás dos lápis de cor, dos bebês reborn e das chupetas, há um cérebro que precisa de cuidado, do tal do “dolce far niente”, de fazer algo pelo simples prazer de fazer. Porém, o ser humano foi criado para criar; o incômodo criativo (e tudo o que vem nesse processo) também é sinônimo de relaxamento e autocuidado. 
Descanso pode representar oportunidades de desafios intelectuais com direito a desconforto, o que não se pode confundir com o estresse da rotina profissional. Essas experiências não deveriam ser evitadas, mas somadas aos necessários momentos de total indulgência, sejam eles usar chupeta ou assistir àquela série que você não conta para ninguém que assiste. 
Da mesma forma, os desafios intelectuais precisam integrar momentos importantes da vida adulta e completar o quebra-cabeça complexo que resulta em bem-estar físico e desenvolvimento mental de um indivíduo saudável. 
O problema está na falta desse equilíbrio, em renegar o desconforto de um hobby ou daquela criação que não gera retorno financeiro. Isso leva à limitação e ao perigo de ter uma vida composta exclusivamente de pressão profissional durante 10 horas diárias e de prazeres culpados, para tentar curar uma ferida que pode nunca fechar. 
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